quarta-feira, 5 de junho de 2013

Os problemas de Faroeste Caboclo.

A partir do momento em que Legião Urbana ameaçou parar de bombar nas lojas de CDs, tiveram a ideia de fazer com que a banda bombasse também nos cinemas.
Assim veio Somos Tão Jovens, filme sobre a juventude de Renato Russo (líder do grupo) que, mesmo com falhas no roteiro, mostrou de forma divertida e censurada a vida do rockeiro. 
Menos que um mês depois, estreou outro filme relacionado a banda mas, desta vez, não era a biografia de ninguém, e sim a adaptação cinematográfica da música Faroeste Caboclo.

A música, com mais que nove minutos de duração, é uma das mais conhecidas e amadas da Legião Urbana e uma das poucas no mundo em que, mesmo com 159 versos sem que nenhum se repita, está na ponta da língua de quase cada brasileiro.
Existem mais brasileiros que sabem cantar Faroeste Caboclo do que os que sabem entonar o hino nacional.
A letra fala sobre João de Santo Cristo, destinado a ser um bandido desde criança e que, após viajar muito, se torna o maior traficante de Brasília, conhece a garota Maria Lúcia e após muitas desventuras (que incluem trabalhar como carpinteiro, ir preso, ser violentado e recusar o chamado de um homem poderoso) é assassinado pelo traficante Jeremias, mas não sem matá-lo também (especificamente com cinco tiros de Winchester-22).


Algumas coisas da letra original não são acrescentadas no filme. Afinal, é uma adaptação, e não uma transcrição. "Não é um videoclipe" foram as palavras exatas de René Sampaio, diretor do longa metragem.
Portanto, o filme é muito bom, se forem ignoradas as coisas da música que não foram aproveitadas.
Alguns dos conteúdos da letra original que não foram utilizados no filme são:

 - A infância de João, roubando as velhinhas na igreja ou "comendo as menininhas da cidade".
 - Sua ida á Salvador.
 - Seu encontro com um boiadeiro em Salvador.
 - "Sob influência dos boyzinho da cidade, começou a roubar."
 - Um senhor de alta classe com dinheiro na mão.
 - Diálogos épicos.

E se algumas coisas são cortadas da letra original, algumas outras foram apresentas modificadas e fora de ordem.
Se na letra João vai preso, estuprado e só depois conhece Maria Lúcia...no filme, João conhece a garota, é estuprado e só depois vai preso. 
Portanto, em quesito de adaptação, o filme não conquista. Nenhum legionário assistirá ao filme sem cantar a música e notar que "o filme está cantando errado".
Porém, os fãs mais bonzinhos vão saber ignorar e dizer:
 - Tudo bem, algumas coisas precisaram mudar para que se adaptasse ao cinema. Se fosse realmente ao pé da letra, seria muito non-sense, então foi bom terem modificado certos pontos."
Porém, alguns pecados podem conviver em harmonia conosco, mas alguns são intoleráveis.
Tudo bem mudar detalhes, mas revirar a historia e tornar ela algo que ela não é...isso sim é inadmissível. E é exatamente o que René Sampaio faz em Faroeste Caboclo ( o mesmo que Chris Columbus fez em Percy Jackson e o Ladrão de Raios). 


Toda a situação imposta pela canção tem sua emoção destruída e reconstruída neste filme.
Ao ouvir a música, a motivação é torcer para que João e Maria acabem juntos, para que ele se dê bem, afinal ele é o personagem que te cativa desde o começo da música por ser malandro e saber se dar bem na vida mesmo com "a descriminação por causa da sua classe e sua cor" e outras dificuldades.
O personagem João de Santo Cristo é, na canção composta por Renato Russo, o personagem cativante que mesmo sendo um "vilão" ainda consegue com que você torça por ele justamente por ele ter a personalidade encantadora de um ser humano = Astuto, esperto e recheado de defeitos.
E assim como a letra te instiga a adorar João, ela te influencia a odiar e desejar a morte de Jeremias, o rival de João que deve ser odiado por quem ouve a canção, afinal ele é um "maconheiro sem vergonha que organiza a rockonha e faz todo mundo dançar", além de também "desvirginar mocinha inocentes dizendo que era crente sem nem saber rezar". De modo que os motivos pra odiar Jeremias são simples. "Eu amo João, ele odeia Jeremias, então eu também odeio Jeremias".
Tudo isso que a música constrói cuidadosamente e encaixa para que, mesmo com furos, dê personalidade ao personagem...é destruído no filme.
João deixa de ser o personagem malandro e humano que era para se tornar um brutamonte que não faz nada além de andar, atirar e fazer cara de rapaz perigoso. Uma grande montanha ambulante, que não expressa sentimentos (e quando tenta expressar raiva, fracassa) ou personalidade alguma.
Retire a personalidade e o carisma do protagonista da história, e logo terá removida toda a emoção que a trama (tanto da música quanto do filme) pode vir a transmitir.


Sem a personalidade do protagonista, momentos épicos são perdidos, por exemplo as frases que foram cortadas do filme, como:
 - É melhor o senhor sair da minha casa, nunca brinque com um peixe de ascendente escorpião.
 - Jeremias, eu sou homem, coisa que você não é, e não atiro pelas costas não. Olha pra cá, filha da puta sem vergonha, dá uma olhada no meu sangue e vem sentir o teu perdão.
Assim, o personagem perde seu propósito, perde seu carisma...coisa que é até exagerada na hora de reproduzir o personagem Jeremias que, por sua vez, virou um cara de bigode, cabelos lisos e personalidade inteligente, desesperada e carismática. 
Talvez Jeremias seja o único personagem carismático deste filme. 
E um filme em que você torce para que o vilão vença não é legal, ainda mais se for baseado em uma música que você ouviu torcendo pelo "herói".

Portanto, não reclamem que o filme foi infiel a música, apenas reclamem que a música é ótima e o filme não é tão bom quanto deveria ser...
A culpa é de Renato Russo e sua genialidade complexa, por ter feito algo tão bom e difícil de traduzir para o cinema sem que desse certo.

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