Tinha uma das piores vidas da qual já ouvira falar. Sem emprego nenhum, sem um tostão no bolso. Vontade de mudar? Imensa. Incentivos? Zero. Jamais procurava emprego e se, por ventura, encontrasse algum, uma desculpa surgia. Ás vezes inventava uma doença que o impossibilitasse de trabalhar. "Pouco dinheiro", dizia ele. Precisava de mais.
E pra quê precisava de mais? Preso nas suas veias dos braços uma grande seringa preenchida por substâncias caras. Caras e ilegais. Ilegais e fatais. Justificava bastante a rejeição de empregos. Mas não só isso.
Seus olhos vermelhos faziam-lhe lacrimejar a todo o tempo. Um cigarro comprido ocupava-lhe os lábios e tirava-lhe o fôlego. Quando abria a boca e soprava a fumaça fétida para o alto um hálito enojante de álcool a acompanhava.
Continuava andando. Cambaleava vez ou outra com os sentidos entorpecidos das drogas que não lhe davam mais prazer, só lhe davam tontura e lhe traziam á mente tudo que havia de ruim. Não lembrava nem quem era, apenas do que não era - Bom.
Dois passos á mais. Se sente tonto. Escorrega nos próprios sapatos e cai ao chão. Usa as mãos pra que o rosto não atinja o duro concreto da rua. Se levanta...a mão sangra. O sangue escorre pelo dedo anelar direito. Observa a mão.
- Eu me odeio. - Resmunga o homem. A mão, a não ser pelo sangue que tanto teimava em escorrer mesmo que fosse chupado e cuspido de volta ao chão em que havia caído, era totalmente limpa. Quando tocava a própria palma sentia uma pele macia, fofa e lisa. Olhou para o dedo novamente e notou que era o dedo anelar. Riu baixinho ao pensar que aquele era um dedo praticamente inútil...jamais colocaria uma aliança ali. Adoraria, mas a mente racional e inteligente que pensava ter sabia que isto não aconteceria.
- Eu me odeio. - Voltou a resmungar. Chupou e cuspiu novamente uma quantidade considerável de sangue do dedo quando finalmente voltou a andar com atenção pela rua e notou, á sua frente, um casal caminhando de mãos dadas.
Eles estavam há alguns passos á frente do homem. Andavam despreocupados enquanto conversavam. Envoltos por risos alegres e que, vez ou outra, eram interrompidos por selinhos.
O homem estava tão perto do casal que podia ouvir parte de sua conversa. Foi quando ouviu a garota dizer de forma espontânea:
- Eu te amo.
A resposta de seu namorado não tardou:
- Eu também.
"Eu também"? Que tipo de resposta é essa? A garota havia acabado de declarar seu amor ao namorado e o rapaz apenas concordou como resposta? Esta era uma das coisas que o homem, que "sem querer" ouviu o diálogo do casal, não conseguia entender. Ela lhe oferece amor, e ele retribui com egoísmo? Com a falta de expressão que não demonstra nenhuma reciprocidade? Simplesmente não entendia.
Sentiu até dó pela garota. Mas sentiu, com uma intensidade maior, inveja do rapaz. Como pôde ter conseguido uma namorada dando aquele tipo de resposta? Ainda mais uma namorada linda como aquela.
A garota, mesmo observada de costas, era admiravelmente bonita. Seus cabelos loiros, lisos e compridos balançavam com o vento a cada passo dado pelas longas e grossas pernas da bela garota.
Gostaria de ter alguém.
Seu celular começou a tocar. Enfiou a mão no bolso e em um instante já examinava a tela do telefone anunciando a ligação que estava sendo recebida de um número desconhecido. Antes de atender, reparou no dedo anelar. O sangue já não mais escorria.
Atendeu. Uma voz desconhecida lhe perguntou o nome e ele respondeu. Era uma oferta de emprego.
- Temos uma entrevista pra você. No setor de expedição da nossa empresa. O salário inicial é razoável, mas as oportunidades de crescimento são enormes.
- Sabe me dizer qual seria o trabalho a ser desenvolvido?
- Há grandes oportunidades de crescimento dentro da nossa empresa, mas de início ajudaria em serviços como carregamento de caixas....
- Perdão, não vai dar. - Resolveu interromper. Pôs a mão livre nas costas e se lembrou da dor que sempre encontrava como desculpa. - Eu tenho problemas de coluna e...
Sua visão lhe interrompeu. Novamente, quase que contra a sua vontade, seus olhos captaram a imagem do casal que caminhava á sua frente. Focou no rapaz. Além de ser alto, andava com passos lentos e retos. Não conseguia de maneira nenhuma imaginar um homem como aquele tropeçando, de tão alinhados e precisos que eram seus passos. E, apesar da volumosa blusa de frio que estava usando, era possível perceber que o rapaz estava andando com a coluna ereta, valorizando seus ombros largos e olhando direitamente para a frente. Volta e meia, a garota soltava uma risada gostosa e confortável de ser ouvida e caía com a cabeça apoiada nos fortes ombros do rapaz. Então, lembrou-se de que estava ao telefone, arrumou sua própria postura e, em segundos, já estava andando com a coluna 'endireitada" como o rapaz á sua frente. Continuou falando. - Eu aceito. Pode contar comigo nesta entrevista.
Continuaram conversando. Acertaram horário, local e até a vestimenta. Pronto. Estava agendada a entrevista em que, descobriria mais tarde, passaria facilmente. Ao apertar o botão do celular para encerrar a chamada nem notara que seu telefone não era mais simples e antigo como há minutos atrás, como agora era um bem mais moderno, fino e com dispositivo touch screen. Guardou o aparelho no bolso da calça, que já não era mais apertado, rasgado e sujo. Suas roupas, em segundos, se tornaram bonitas, limpas e novas. Isso sem contar seu bolso esquerdo, visivelmente cheio por uma carteira gorda que há poucos segundos atrás possuía apenas dois ou três cartões de pizzarias e números de prostitutas e fornecedores de suas drogas.
As mudanças foram instantâneas. Instantâneas e imperceptíveis. Seu dedo não mais sangrava.
O casal á sua frente então o surpreendeu com um ato simples.Diminuíram os passos até que pararam, se aproximaram, deram um beijo rápido porém...fofo? Por que pensara naquilo? Eles apenas tocaram os lábios por menos de um segundo, como poderia achar aquilo fofo?
O casal voltou cada um á suas posições naturais e voltaram a caminhar. Ainda indignado consigo mesmo, o homem ouviu a mulher comentar algo sobre o 'selinho'. Sobre ser bom. Sobre ser realmente muito bom.
Sem notar o quanto estava obcecado pelo casal, o homem notou cada movimento brusco ou leve no corpo do rapaz. Enquanto segurava a mão da namorada com o braço esquerdo, o direito se esticou e pegou no bolso um chiclete. Atirou-o a boca. Observando-os pelas costas, notou levíssimos deslocamentos no maxilar do garoto á sua frente e percebeu que o mesmo estava mascando o tal chiclete.
Riu. Ao abrir a boca com cuidado para que seu cigarro não caísse, a fumaça do mesmo veio até sejs irritados e vermelhos olhos. Lacrimejaram. Seu nariz também se irritou e escorreu. Não era apenas cheiro de fumaça. Era podre. Um odor totalmente desagradável, semelhante a carvão ou um monte de papel queimado.
Apostava que o hálito do rapaz á frente era agradável. Talvez até com aroma do chiclete que mastigava.
Os olhos lacrimejaram mais e sua visão ficou, por um instante, deturpada e embaçada como se estivesse vendo tudo através de um óculos cheio de arranhões em suas lentes. Fechou os olhos para que tal sensação passasse e perdeu o equilíbrio. Cambaleou novamente e quase que reencontra o chão mas mantém a postura reta e consegue se equilibrar firmando os pés com força no chão, levantando um pouco de poeira e propagando um som leve como o bater da porta de um carro.
Ao entreabrir os olhos para se estabilizar, notou que o casal havia olhado para trás por causa do barulho. A garota tinha um rosto lindo, com olhos azuis e traços bem definidos. O rapaz tinha belos e escuros olhos castanhos, com o rosto limpo e um olhar centrado, ciente.
Assim que se reergueu e se mostrou pronto para continuar a caminhar, o casal voltou a olhar para a frente e caminhando.
Seus olhos eram vermelhos, o do rapaz castanhos. Seu olhar era sonso e perdido, o rapaz era sério e decidido. Seu hálito emanava uma vida regada a cigarros, bebidas e todo tipo de entorpecentes, o rapaz emanava o aroma de chiclete pela boca. Seus braços eram magros e com seringas espetadas nas veias, já os do rapaz eram fortes e sua mão segurava a mão da garota mais linda já vista por ambos os homens.
Cuspiu o cigarro no chão. Arrancou as seringas dos braços e gemeu baixo pela dor repentina. Respirou fundo soprando seu hálito para baixo, cuspindo saliva enegrecida de cinzas. Esfregou o rosto com as mãos.
Descobriu o rosto. Se analisou. Visão limpa. Tinha certeza de que o castanho de seus olhos agora era notável. Há anos não enxergava tão claramente. O mundo parecia até mais bonito, mais fácil...mais seu. Abriu a boca, surpreso. Seu hálito chegou até o próprio nariz mas não lhe fez lacrimejar dessa vez. O odor de ervas, cinzas e álcool agora fora substituído pelo aroma doce de tutti-frutti.
Ao notar tais diferenças instantâneas no rosto, não tardou a apalpar os próprios braços. Não estavam musculosos como um marombado de academia, mas fortes e saudáveis como de alguém que se alimenta, trabalha e cuida de si mesmo. Não com força sobrenatural e muito menos heroica...porém sentia que poderia levantar o mundo nos braços. Seu olhar se estendeu por todo o próprio braço, seu antebraço...e finalmente as mãos. Notou o dedo anelar. Nele, agora estava uma bela aliança que não se lembrava de ter colocado.
Como? Não colocara aquilo. Nunca. Afinal, era esse um dos grandes motivos de ter dito, há momentos atrás, que se odiava. Claro, isso e as drogas, o desemprego, a pobreza e toda a medíocre vida que leva...ou levava a momentos atrás. Como tudo mudara? Ou melhor, como poderia ter dito que se odiava?
Olhou para o casal e viu que andava tão perto deles que poderia muito bem ser confundido com a sombra do rapaz. Notara até mesmo que ele e o tal "namorado" eram estranhamente parecidos.
Fechou os olhos com força. Abriu-os.
Mais ainda havia mudado.
Não se encontrava mais perto do casal. Agora era parte dele. Com braços fortes, andar linear e ciente, olhos castanhos, hálito fresco e empregado. Andava de mãos dadas com a garota. O homem que há pouco seguia o casal com visão entorpecida e sentimentos abalados, agora segurava a mão de alguém tão bela a ponto de abalar sua visão e entorpecer seus sentimentos. Era, ele mesmo, o rapaz que tanto invejara.
Olhou para trás. Caído no chão, bem perto dele e de sua namorada, um homem jazia morto. Vestia roupas sujas e rasgadas, possuía um cigarro caído perto da boca seguido por baba e pelas seringas que saltaram de seus braços, provavelmente, quando caíra. O rosto era semelhante ao que seu já fora. Olhos arregalados, sem vida e vermelhos como sangue. O dedo anelar da mão esquerda rasgado. Em carne viva.
Podia ter sido seu fim. Aquele podia ter sido seu destino se não houvesse mudado. Adorava sua nova vida. Como pôde ter dito que se odiava?
- Eu te amo. - Ouviu sua namorada dizer com a voz doce que chegou a seus ouvidos anunciando finalmente a paz e alegria de uma vida digna.
Olhou novamente a si mesmo. Possuía dinheiro. Estava saudável. Apresentável. Dependente de si, ciente e vivendo como um ser humano deve viver. Sentia orgulho de si mesmo. Respirou fundo e sentiu seu pulmão limpo. Olhou para a namorada e a respondeu:
- Eu também.
Nenhum comentário:
Postar um comentário