domingo, 19 de fevereiro de 2012

Devaneios de Anselmo - Carta a um adolescente.

Ei, gente, tenho uma boa e uma má notícia. A má é que vamos quebrar a nossa promessa de que esse mês só teria textos sobre zumbis, pois esse não é bem um dos temas favoritos de Anselmo. E a má notícia, é que o texto de hoje está fantástico. Aproveitem.




CARTA A UM ADOLESCENTE
Você pediu que eu escrevesse sobre a maldade. Foi a primeira vez que uma pessoa me pediu isso. Você foi corajoso e honesto porque falar sobre a maldade é falar sobre nós mesmos. A maldade é algo que mora dentro denós, à espera do momento certo para se apossar do nosso corpo. Ao pedir que eu falasse sobre a maldade você me pediu que o ajudasse a entender o lado escuro de você mesmo.
Para entender a maldade é preciso entender, antes, os dois poderes de que somos feitos. Somos feitos de uma mistura de amor e de poder. Amor é um sentimento que nos liga a determinadas coisas, e vai desde o simples gostar até o estar apaixonado. O amor quer abraçar, ficar perto, proteger. Por causa desse sentimento fico triste vendo que aquela pessoa está triste. O amor faz isso: coloca o outro dentro da gente. O que o outro sente, a gente sente também.
Por isso, muitas pessoas são vegetarianas. Elas não suportam pensar na dor por que passam os bichos para que nós nos lambuzemos com a carne deles.
O amor nos liga à natureza toda. Eu amo a natureza - os riachos de água limpa, as cachoeiras frias, as matas, com suas samambaias, avencas, orquídeas, bananeiras, as borboletas, cigarras, pássaros. Nós humanos, temos os olhos deformados - não percebemos a beleza dos seres que são diferentes da gente.
Para ser alguém na vida, você terá que ir devagarzinho, ir desenvolvendo poderes no seu corpo, poderes que tomarão a forma ou de conhecimento ou de habilidades.
Quando você tem essas duas coisas juntas, o amor e o poder, coisas muito bonitas acontecem. O poder torna possível a existência daquilo que a gente ama: gerar um filho, plantar um jardim, construir uma casa. O poder, assim, está a serviço da alegria. Pelo poder eu posso contribuir para que o mundo seja melhor. O poder e o amor, juntos, estão a serviço da preservação da vida.
Você me perguntou sobre a maldade: maldade é isso - quando as pessoas sentem prazer no ato de destruir, isto é, quando as pessoas sentem prazer no exercício puro do poder, sem que esse poder tenha um objetivo de vida. Bondade é o poder usado para a vida. Maldade é o poder usado para a morte.
Adolescência é o momento da vida quando se descobrem as delícias do poder. Criança tem amor mas não tem poder. Ela quer o sorvete mas não tem o dinheiro. A mãe segura, põe de castigo, dá palmada. A criança é impotente. Na adolescência o corpo se desenvolve. Fica maior que o corpo da mãe, o corpo do pai. Ganha força. Juntos, então, os adolescentes se constituem num exército poderoso. É por isso que os adolescentes gostam de estar juntos: isso lhes dá um sentimento de poder. Há coisas que nunca fariam sozinhos. Mas, em grupo, tudo é permitido. As pessoas mais mansas podem se tornar monstruosas em grupo. No grupo a gente perde o senso da responsabilidade moral.
Como eu já disse, o poder, como fim em si mesmo, sem um propósito de amor, dá prazer rápido.
Por isso, meu amigo, adolescente, quero confessar uma coisa que nunca confessei: "Tenho medo de vocês". O fascínio que vocês tem pelo poder me assusta. É isso que é maldade: poder sem amor.
"E eu to aqui. Apesar das bobagens, do egoísmo, da maldade, da fidelidade esquecida. Apesar dos sonhos destruídos, das vidas acabadas, das histórias mal contadas. Eu continuo aqui. Embora nada seja do jeito que eu sempre quis, embora as pessoas nunca consigam ser sinceras, embora um dia o amor termine. Ainda to aqui. Apesar da destruição, apesar da falsidade, das futilidades, das inúmeras fatalidades. Acho que ainda continuo aqui. e não importa o tempo que leve eu só quero encontrar a minha vida e ser a vida de alguém. Não importa de quem seja."

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